quinta-feira, agosto 27, 2015

Respigar contos magistrais

Vou levar-vos a um lugar mágico. Por baixo de uma avelaneira, esguelho-me pelas folhas rendilhadas e, nas negas dos céus, os olhos conseguem entrever o infinito diluído em tintas celestes inverossímeis. Uma metamorfose tão subtil, pincelada por um rasto de brisa, formando um tecido incorpóreo que parece esfarrapar-se entre as folhas. Estou neste embalo, deitada num lameiro, ouvindo a ópera das cigarras e o ânimo dos chocalhos das vacas que, a esta hora, sob a luz dourada a rasar nos vales, ainda mascam a refeição vegetariana. Estou neste aparente marasmo telúrico, sentindo o hálito de terra molhada, cingida pelo murmúrio do ribeiro e percebo tudo. Constato que sentir Trás-os-Montes é um exercício de reconhecimento e familiaridade, como se fosse encontrar todos os personagens e mais alguns a que me habituei, nos livros de Ferreira de Castro, Bento da Cruz, Miguel Torga, Fernando Namora, Assis Esperança e Aquilino Ribeiro, apenas para citar alguns. Estou neste babujar profundo, nesta geórgica que exalta a vida nos campos e eis que ele, Aquilino, pelo livro que na mão tenho, me responde aos pensamentos.
“O romancista vai de indivíduo em indivíduo, como a abelha quando forrageia o pólen, e a um pede o físico, a outro a índole, a este uma anedota, àquele um pormenor característico, e assim amassa por aglutinação os seus figurantes. Feita a dosagem com inteligência e obtido um bom ajustamento, ninguém dirá que não foram copiados do natural e que não ’falam’. E o orgulho do criador estará em dar a ilusão de que são cópias exactas do mundo em carne e osso”.
Perante este palavreado, como pêndulo que ora se esgueira para a direita, ora para a esquerda, move-se a minha meditação, quase sonâmbula pela dengosa serenidade do campo, e pelo sol que lambe a pele, perdida nesta magia de prosa que atende às inquietações. Apetece-me, com soberba e cobiça, roubar a esta terra todas as suas histórias, para costurar personagens ou figurantes perfeitos. Personagens entre aranhas, formigas, sardaniscas-bebé que se atrevem a deitar na liteira comigo, trevos daninhos, leiras e lameiros, ameixoeiras de casca áspera e gretada, toupeiras, vespeiros secos, varejeiras, bichas-cadelas, pulgões transparentes, folhas caídas, moscas, cabras e aranhas chorudas, sapos enfronhados em severidade, piscos, lavadeiras, rumorejar de vento, caules nus, marias-café fossilizadas no parapeito das namoradeiras, castanheiros, flores-de-maracujá e tantos outros. Predisponho-me, por isso, a esquivar-me como borboleta, levando de indivíduo em indivíduo um pouco deles para as estórias magistrais. A dos bebés que rolam em altares, da cruz no pão no forno, do mito da fonte do Caílho, do filão de ouro na aldeia do Parâmio, do episódio do caga-na-velha, das lengalengas, ou canções de amor e guerra, na época do volfro, das andanças de quem madrugava para as malhadeiras de milho, da ternura da Maria das Cajatas, aventuras de saltos e contrabandos. A Fernanda, a Emília, a Lurdes, a Catarina e a Inês contam-me tudo e eu anoto. Anoto para, quem sabe, um dia agradecer à terra. Por agora, hei-de voltar para o rebusco, pelo outono.

*Crónica publicada a 27 de Agosto, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros

quarta-feira, agosto 05, 2015

Pessoal do meu bairro

O caso sucedeu numa destas noites, enquanto se dava o primeiro ciclo de sono REM, ou movimento rápido dos olhos, quando os sonhos se tornam mais fulgurantes. Formei a imagem idílica do meu bairro. Teria seis cabeleireiros, dois hotéis e uma hospedaria – mais uma casa semi-clandestina –, seis cafés, três restaurantes regionais (as tripas à moda do Porto, ao sábado: chamar lhe íamos um figo), sete lojas abandonadas com a placa “Vende-se”, em destaque, três frutarias à moda antiga, dois quiosques (onde também se faria a raspadinha, teria payshop e, numa delas, também se venderia geleia, tabaco e super-heróis), uma loja de roupa para mulheres ousadas (a avaliar pelos tops rosa-fúcsia que deixariam tudo ao léu), outra para aquelas mais conservadoras (denunciar se ia pelos vestidos avózinha-beata na montra: nada contra), trinta prédios de três e quatro andares (lascados, reabilitados, modernos, do século passado), quinze deles teriam varandas, das quais sete teriam vasos com sardinheiras vermelhas e oito com caninos (que cumprimentariam os transeuntes com um ladrar ora esganiçado, ora grave, dependendo da raça ou do complexo vira-lata); teria dezoito moradias (cinco delas seriam devolutas e uma já teria sido casa de meninas), duas casas fantasma (uhuhhhhh), uma mulher que passaria dia-e-noite, à janela, fizesse chuva, fizesse sol; uma farmácia que faria promoções de marcas de cosmética e de champôs para piolhos, no inverno; um padre que dividiria a casa com estudantes, uma igreja católica e outra evangélica (dica: costumaria estar sempre mais animada às quintas-feiras), cinco passadeiras (duas novas com patadas de cães, marcadas, e três com cor de burro quando foge), cinco semáforos, uma costureira (que estaria sempre à conversa com a vizinha do segundo andar e atrasaria, em meses, a entrega da roupa), uma loja de reparações de eletrodomésticos (ficaríamos na dúvida se não seria uma loja bricabraque), dois andaimes e um taipal, cem carros estacionados, oito caixotes do lixo comum, uma loja de colchões ao lado de uma sex shop, um supermercado, uma ilha que não se vê – mas eu veria –, uma escola, uma ourivesaria-que-nem-se-perceberia-que-o-era. E uma mercearia que seria o local mais internacional que conheceríamos: onde se venderia pêssegos do Paraguai, cerejas do Fundão, maçãs de Setúbal, limões do senhor Amílcar que moraria em Paredes, laranjas do Algarve, ovos da dona Adelaide da rua transversal, amante do padeiro chileno, tomates da dona Ivete da rua de baixo e que seria viúva, ameixas da casa 5, pêras do tal Rocha, alheiras de Mirandela, broa de Avintes, pão da Bairrada e morangos de proveniência incerta. Seria uma rua com cerca de 700 metros, começaria (ou acabaria), num buraco, seria sempre a subir, e terminaria (ou começaria) num jardim com uma estátua ao caixeiro viajante, onde os cães costumariam fazer as suas necessidades.
E como se acordasse desta onírica contabilidade urbana, ocorreu-me ir à janela. Pois qual não foi o meu espanto, cara leitora, caro leitor, quando me apercebi que tudo isto era a verdade. Como o sei? A mulher da janela-faça-chuva-ou-faça-sol acenou-me, lá do fundo, e posso jurar que ainda ouvi dela aquele riso cinematográfico, terror série b. Isso ou é melhor deixar de tomar sumos naturais à noite.

*Crónica publicada a 5 de Agosto, no Porto24 , com a chancela Bairro dos Livros.