sábado, junho 13, 2015

Manual para a Literatura de chão

Olhar para o chão pode não ser, necessariamente, condição melancólica, ou síndrome de bisonhice e muito menos infortúnio. Conheço personagens reais que se dedicam, diligentemente, no ofício da caminhada, à cogitação filosófica de investigar os interstícios do passeio, seus alinhamentos, ora geométricos, ora esburacados, driblando fezes de animais (campo minado e oleoso), invólucros de batatas fritas, folhas velhas, jornais estropiados e pastilhas elásticas com o ADN de alguém. Como se percebe, há todo um universo de indagação e infinito raciocínio, digno das teses mais doutas da academia. Outrora, eu própria já pude contemplar notas de cinco euros, anéis e pulseiras de prata, bugigangas, farrapos, fios, cascas de laranja e beatas. Tudo coabitando na mais serena harmonia, como se fossem o princípio do universo e estagiários da decomposição. Ultimamente tenho sido bastante afortunada em moedas de um cêntimo. Posso jurar que a lata de chá onde guardo as moedas de cor de cobre já deve dar para pagar dois cafés e meio no estaminé do senhor Manuel. Mais surpreendente, porém, será a descoberta que fiz recentemente.

Caros leitores, sim, o chão que pisamos é terreno fértil para parir aquilo que denomino de agora em diante por literatura de chão. Bem sei que poderia ter-me dedicado a encontrar um nome mais sexy, digno dos anais da literatura comercial e que criasse buzz na comunicação social, do que simplesmente ter resumido a coisa a literatura escatológica. Conquanto essa possibilidade fosse a saída mais escorreita, devo confessar que seria indigna designação para o zelo que merece.

A semana foi profícua nessa contabilidade literária. Não fosse este escrutínio detetivesco para as coisas do chão e eu não teria encontrado, cento e sessenta e nove passos depois de sair de casa, a-fotografia-tipo-passe-de-um-rapaz. Deveria ter, mais ou menos, dez anos, era ruivo, sardento à la Tom Sawyer, certamente fugitivo da carteira de uma avó babada, pusilânime e conservadora – a avaliar pelo desgaste –, provavelmente caída no momento em que guardava o troco dos docinhos húngaros acabados de comprar na confeitaria em frente. Não teria, da mesma forma, me deparado com o bilhete da Zulmira: “Deixei bacalhau à brás no frigorífico”; o resto de um exame de História da Sandra: “a II Guerra Mundial foi um momento de grande importância, porque…”; um andante rasgado; uma oração a santa rita de Cássia: “a santa dos casos impossíveis e desesperados”. Não fosse eu o mais próximo do CSI português, exímia dissecadora das palavras calcadas no chão e, claro, nada disto seria possível: “Sandrine, não me deixes, és a minha cena. Amu-te”. Bem sei, não é bonito, mas pode ser profundo, dependendo dos magotes contundentes que se dá na Língua Portuguesa.

Caros leitores, estava preparada para que tudo acontecesse, menos para isto: mil quatrocentos e setenta e oito passos depois, um bilhete que era pura poesia, uma ode a este texto: “Sem ti, fico no chão.” Estava quase a empreender um projeto especial diário, apenas dedicado à literatura de chão, mas temo que durante uns tempos terei de me recolher. Quando me levantei para recolher este último exemplar da mais excelsa literatura, o meu universo ficou, de facto, mais perto do solo, entrou em transe, vendo estrelas, luzes, seguido de uma dor aguda. É, meus caros, aquele poste de iluminação não estava nos meus planos.

*Crónica publicada a 5 de Junho, no Porto24, com a chancela Bairro dos Livros.

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