segunda-feira, março 18, 2013

bairro dos livros| Snifar Papel


 Balsâmico, madeira, acre, mofo, floral. Acho que o aroma que a Lis mais aprecia na degustação de um livro é vanilina. (Faça você mesmo: agarre um livro e snife-o, sente-o?). O cardápio de fragrâncias literárias poderia continuar, até porque, há um perfume com essência a livro: o Paper Passion, criado pela perfumista Gaza Schoen, a pedido do editor Gehrard Steidl.


Banal para snifadores de páginas, portanto, que evocam invectivas a quem não souber que o aroma livresco se deve à lignina, ou lenhina, uma substância que as árvores têm semelhante à baunilha. O mesmo pode acontecer para alguns tipos de papel onde se inventa vários tipos de literatura: postais, bilhetes, post-its, sebentas, revistas...

Não admira, por isso, que quando Lis folheou e “snifou”, recentemente, alguns números da Hei, revista cultural portuense dos anos 90 do século XX, editada por Jorge Rui Martins, lhe viesse à memória a infância: “isto cheira à casa da minha tia”, confidenciou-me.

O que ela quis dizer, decifrei depois, é que o olor se assemelhava ao da caixa de madeira onde a tia guarda literatura epistolar: as cartas, os telegramas e os aerogramas (foi Fernando Pessoa quem os inventou) que o namorado, hoje marido, lhe enviava de Moçambique. Eram às dezenas.
Nessa altura, a história vinha toda misturada, porque os aerogramas não estavam numerados. Mil e cem cartas apaixonadas, contou-as Lis, que falam de emboscadas no meio do amor, de “turras” no meio de minas, tanques, explosões e mortes.

A Lis jurou-me, ainda, que, enquanto as lia, sentia o cheiro de cacimbo no mato africano e de petricor, nome do odor da terra molhada depois da chuva. Como pode ela sentir o olor de um lugar onde nunca esteve? E somos nós atraídos pela olência deste ou daquele livro; e dos odores que nos fazem sentir? Será por isso que recentemente lançaram um e-book com aromas? Oh, a que cheirarão os livros do futuro?: terá a borracha essência a baunilha? Ainda haveremos de snifar ecrãs à procura do cheiro da literatura.

(Crónica publicada no dia 15 de Março no semanário Grande Porto, na página Bairro dos Livros, numa iniciativa que reúne ainda os cronistas Rui Lage, Rui Manuel Amaral e Jorge Palinhos)

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