domingo, fevereiro 10, 2013

a pintura dos sonhos

prova de con.tacto [1]

texto|vanessa rodrigues fotografia|antónio morais


Uma vez vi um homem de guarda-chuva a descer aquela rampa. Era noite, chovia e a neblina que bafeja a fria penumbra de Inverno entranhava-se nos ossos da câmara fotográfica, tua amante. Com ela suspensa ao ombro, como sempre, detiveste-me. E eu congelei a imagem na minha mente - enquanto tu congelavas a tua, erguendo a máquina, sustendo a respiração para disparar: o grão que a neblina faz, o baço da humidade chuvosa a esfumar o amarelo da iluminação de rua, bafejada a vapor sódio, os prédios carregados de cinzento, tempo denso e a silhueta negra do homem que descia a viela. 

Posso imaginar-me a retirar das gavetas neurológicas a memória desse frame congelado. Uma imagem revelada a química mental, sem ardor e sensação física de olhá-la num ecrã, ou na mão.
Agora que a lembro parece um sonho remoto, ou uma pintura. (Os sonhos, às vezes, parecem pinturas). Dessas com desenhos e sombras esbatidas a esfuminho. Belas. 

Vejo a viela da Alegria, porque se cruza com a rua com esse nome, e cujo nome não o sei. Pediste-me que a subisse e descesse. Que abrisse o guarda-chuva e, naquele ângulo certo, imortalizaste a viela em mim. Um frame cinematográfico que desfia outros tempos. O homem foi apenas a inspiração. A mulher que olha e se detém é um espelho de tempo repetido. Talvez o que vimos não fosse um homem, porque as cores do real logo cederam à textura dos negros. Transformaram-se. Alquimia dos frames. Adormeci ou acordei? Conta-nos o segredo: como consegues caçar a pintura dos sonhos? 


*prova de contacto é uma rubrica exclusiva do blogue crónica luna samba de vanessa rodrigues (textos) e antónio morais (fotografia).

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