terça-feira, maio 01, 2012

Hilda: - Stravinsky harmoniza com Tolstoi e a chuva na janela

Encosto a minha cabeça ao Tolstoi. São volumes que me afagam o cabelo e já é tarde. Quase cedo ao mergulho em apneia. Sonharei com livros? Viverei as histórias deles, num sonho? De quantos sonhos preciso para viver um capítulo? Ainda penso nisso, estendendo a suavidade dos meus desejos, mas não te digo, não a ti, nem a ele. 
Será cedo, demasiado cedo. E ainda seríamos cúmplices pela manhã. Pedimos o sumo de laranja, juntos. Bebemos a água. Fomos até lá casa para embalar a noite e, afinal, só queremos água, porque temos sede, dessas palavras: do Bolaño nas prateleiras, dos volumes da obra completa de Jorge Luis Borges, de Pessoa, os ensaios críticos, de Walter Whitman, de Dostoievsky (tinhas "A Submissa" fora das estantes, onde andaria?). A cama está por fazer; andas há dias para lhe pôr novos lençóis, que eu faça o que quiser, que ele também, e afagamo-nos com os livros na cabeça. Agarro a almofada e cedo-me ao chão. 
Há mais um cigarro; e o fumo sorve-o o ar como incenso bruxuleante em direcção ao nada. Há éter e o que somos. Fecho a janela. Começa a luz a subir e Stravinsky com ela, a librar; libra na luz da manhã que se acende e este silêncio de rua deserta, de não-lugar, de pássaros madrugadores. Tão tarde e nós, a três, a sermos cedo e precoces, enquanto olhamos a íris, o nariz, os lábios e destilamos palavras: sedutor, misterioso, pontiagudo, judeu, empinado; com os olhos a enfrentar tempestades e vendavais. Serão os meus, e eu enterneço-me. Juntaria o melhor dos dois e nada a reclamar. Desejo os dois de forma diferente e outro para amar. Perigoso, magnético, uma intensidade, doce. E eu tão sol. Tão nuvens brancas sob o azul techicolor que vi esta semana a 15 mil pés. Estava assim. E falavam. Obturador, lentes, diafragma, e mais de cem câmaras a tanger o olhar; que vês, assim, com o olho direito quando todos vemos com o esquerdo olho. Agora o oboé, entras na dimensão onde queres que viajemos. Ainda lá vamos, mas eu prefiro a chuva lá fora. Ouve, começou a gotejar no vidro. O baque seco no zinco das pesadas bátegas que o céu lacrimeja. Tão deliciosamente confortante e calmante. Como gosto. Gostamos. E, para isso, interrompemos a sede de palavras. Desencosto a cabeça do Tolstói, dos volumes que me afagam a cabeça e venho à tona. Dormimos? Sem malícia e vontades do corpo. A três, vamos dormir a três, um contra a parede, o meio, eu, e mais perto da luz. Tão quente, luz fria e os nossos pés enrolados no fim. Encosto a cabeça à almofada. Tolstoi não reclama e a chuva imita Stravinsky. Vou sonhar.

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