sexta-feira, novembro 11, 2011

O homem das meias brancas, sob sandálias

Bocejou um pouco antes de entrar. Esperava, como eu, que a Biblioteca abrisse. Chovia copiosa e generosamente. Céu cinzento, agora azul. Nuvens alvas e altas, movidas e atrás de galhos-palitos, nus. E aquela chuva era a natureza a tomar banho. Ela gosta de se empapar, de polir as folhas da poeira de Outono. Sente que o verde desmaia num laranja, até esmaecer para amarelo. E a natureza desmaia um pouco menos se chover, assim, como hoje. 

Talvez ele pensasse nisso, ou já naquele livro que tem entre mãos. Folheia-o com delicada atenção. Folheia-o percorrendo o olhar. É um calhamaço, espreito agora e parece importante. Assim, deve ser um livro de História de Arte e pinturas escuras, castanhas, da cor das sandálias dele. Não sei como consegue ter as meias brancas secas, depois da chuva que a manhã fazia correr. 

Entramos à hora a que abrem as portas e havia o silêncio interrompido por passos sobre madeira. Os dele, reparei, faziam menos ruído. Eram as sandálias.

Sentou-se na mesa em frente à minha e, bisando neste segundo dia, abasteceu-se do Diário de Notícias, e de outros jornais que não consegui ver a capa. Deixou menos opção para a rapariga de computador branco, como as meias dele, que se senta em frente. 

Tem o rosto cansado, as mãos desgastadas, as rugas entranhadas na face, e um guedelha a cair-lhe nos olhos. Tem um olhar concentrado no livro, mas perdido na vida. Se a vida dele fosse aquele livro, poderíamos dizer que é um homem empenhado. Mas há uma suspensão que lemos na silhueta dele. Há o corpo esguio, que talvez finte a chuva, mas não tenha acertado algo na vida. A camisola está puída, de um azul-marinho e as calças de ganga muito coçadas. Tem algo de asséptico e um bigode penteado. Há pouco, tomou um café, contou os trocos e fez um cigarro que há-de ter ido fumar lá para fora. Agora, vejo, apagou a luz do candeeiro, levantou-se e arrumou os calhamaços. Afinal, havia mais que um. Os óculos caem-lhe ligeiramente, deslizando para o nariz- como se quisesse evidenciar que estão ainda mais concentrados que ele, a olhar, contemplando. 

Ergueu-se e pude ver-lhe a camisa que sai da puída camisola: é verde e branca, axadrezada. Será que saberá movimentar as peças do xadrês: que peça será ele no tabuleiro? Um bispo silencioso mais estratégico e essencial? Um peão, a dar dois passos a primeira, defendendo propriedades e os outros. Um rei silencioso que conheço, parece, os cantos à biblioteca? Que livros trará agora? Será que os foi requisitar? É que ninguém aqui pega nos livros para devolver às estantes, é regra, pedem os funcionários: melhor deixar nas mesas para que os entreguem aos devidos lugares. Não voltou ainda, não sei e volta, porque este homem não tem mais nada a não ser a roupa e o corpo magro. Não o vejo ao redor e perdi-lhe o rasto. Não fossem as sandálias castanhas e as meias brancas sob elas eu não teria reparado nele.  

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