domingo, outubro 23, 2011

O Perfume

Uma de nós pode estar equivocada: a que reflecte e a que escreve -  com mais impulso que a primeira - mas, agora, não há como parar os grãos da ampulheta, para fazer o teste dos sentidos, pois este é o aforismo: leva-te o nariz ao tempo; dá-te o odor o relógio dos dias que aí vêm. 


Passo a explicar: é pelo odor, primeiro, que sei que uma estação chegou; outrossim, que se foi. 

E, mesmo que o sol enganador se exiba lá em cima, pelo processo cerebral do olfacto não há como enganar. 


Com a Primavera , depois desse nu de Inverno (apesar de nossas fartas lãs e grossura de tecidos no corpo) começa a clorofila floral a entrar-nos nas narinas; aquele friozinho da manhã a dissipar-se com o ar termal que inicia a vestir, ao redor, a natureza renovada - enquanto nos começa a pedir menos roupa, levezinha. É aí que nos sentimos abraçados, podemos sorrir que nem tolinhos, porque a Primavera está aí, como um lança-perfume.

O Verão: quando os fins de tarde se tornam mais parcimoniosos e o odor ardente de maresia, areia molhada e bronzeador de pele no ar, ainda que não o usemos. Cadência de estio é um perfume de pele quente. Sobretudo a pele quente, transpirada, como cheiro identificador de hormonas estivais.

E o Outono é uma espécie de verão de Inverno. Sim, é apenas Outono, dirão, com ADN específico, sem comparações (embora cada estação difira, conforme geografia calcada), mas tem aquele sol exibido - esmaecido; nesse desmaio que nos deixa mais sensíveis à luz e intolerantes a um calor que sabemos poder nos fazer mal à mona. 


E o cheiro? Ah, pois: as folhas secas, frescas, aquelas acabadas de cair, embora já envelhecidas nos galhos; e as folhas calcadas, velhas, na terra, com um acre olor, de clorofila passada. E se chover, claro está, tudo muda na percepção, pois uma fragrância musguenta, quase liquefeita, na diáfana forma de chegar aos poros, como se fosse agente secreto a infiltrar-se, entra-nos narinas dentro, quase melada, nas suas variações líricas, em cada um dos actos desta Ópera de 4 estações.

E este Inverno que esta manhã entrou de rajada pela alma, cheira a cabelos brancos e a ar dissipado: é que o ar que o vento corta tem esse cheiro etéreo de nada. Há aquela humidade intensa que nos trespassa a derme até aos ossos, misturando cheiros neo e antigos num perfume matizado com toques amadeirados. Cedro, carvalho, sândalo. É a madeira aromática, envelhecida, como em estágio continuado, que se impõe. Que arromba a porta, embora ainda haja, neste início, a secura da clorofila morta, e o amargo da terra revolvida pela fúria invernil. 


Logo, não admira, cheira a hibernação, de certa forma para unir o que as outras estações separam: nestes tempos sou mais comedida nos impulsos, logo, há-de fundir-se a que pensa com a que escreve, aceitando o facto irrevogável: lá fora, desde hoje, cheira a lareira, embora ela ainda aguarde o nu dos troncos e o seco das folhas que restam. O perfume de Inverno está na rua, entrou casa adentro, há-de por cá ficar por uns meses. De resto, nunca estou preparada para o cheiro definitivo de Inverno, apesar de ser filha dele. É que, em três meses, o tempo ficará com 31.

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