quinta-feira, março 10, 2011

Twilight zone, ou o gozo do sublime, o outro, em nós

Pode ser efeito do álcool, mas de manhã não bebo. Pode ser efeito do cansaço, e a Primavera pode ter conspirado para isso. Pode ser efeito de alucinógenos, mas só se injectados às escondidas, quando eu não der conta. Que fique bem claro: desconheço quem poderá estar por trás de tais conspirações que me fazem andar pela rua, como se deambulasse num filme inventado, numa realidade paralela, por vontade alheia, vendo os outros ao meu redor ainda mais estranhos que o habitual. É como se este quotidiano estivesse a ser degustado a preceitos oníricos (ponham surrealismo nisto) e que, de repente, vou, de imediato, acordar. Ando assim, como se vivesse um mundo paralelo e aquela realidade não fosse a minha: quem sabe ando a mudar a carapaça, a sair-me a casca, a mudar-me a pele, ou as folhas, em breve, vão florir. A mesma sensação aconteceu-me pela primeira vez que mergulhei de garrafa e andava com as barbatanas a dar a dar no meio do Oceano Atlântico, na costa de Ilha Grande. Aí pode ter sido efeito da mistura no oxigénio da garrafa, mas nunca saberei. 

Calhou-me dizer ao instrutor: 

- No mergulho perco um pouco a fronteira entre o imaginário e o real. Parece que estou dentro de um outro mundo a ser espectadora dele. 

O instrutor achou aquilo perigoso e achei melhor ficar calada o resto do curso. Limitei-me a respirar e a fazer bolhinhas no fundo do mar, sempre que a água me enchia os óculos. 

Na rua tem acontecido mais ou menos o mesmo. As pessoas passam e, de imediato, dou conta que estou a pensar se elas existirão na verdade: se algumas delas sou só eu que as vejo, se outras passam por nós e realmente não existem de carne e osso. São uma espécie de seres espirituais, mas com carne e figura humana como os de "Les jeux sont faits" de Jean-Paul Sartre, e que lhes foi dada a oportunidade de cumprirem ou resolverem alguma coisa que ficou inacabada, num mundo à parte, que acontece ser o meu. Sem esoterismos e espiritualidades (que pelos vistos até estão na moda nos filmes actuais: até Clint Eastwood foi apanhado na trama), apenas recordo Sartrianas conspirações e a ironia do acaso. 

Penso nisso, no mundo paralelo que pode haver, à luz do dia, ao redor de nós, em alta convivialidade com os nossos bafos e ocorre-me um "por que não?", se quando eles passam, iguaizinhos a nós, ninguém vai conferir mais tarde se eles têm uma vida, casa, contas para pagar, angústias, alucinógenos, cansaço, e saca-rolhas para abrir um "JP" de Azeitão e perceber se oxidou ou não.

Penso nisso depois de saber que na Estética Comparada (a ver se percebi bem a aula da hoje que isto de mexer em Filosofia, Literatura e teorias comparadas não há-de ter bom efeito no cérebro: pluff!) o Sublime tem pendurado às costas (pode ser o "esse" o primeiro ombro e o "eme" o segundo) o espanto e o gozo como fruição estética de uma certa fealdade, enquanto categoria da coisa: ou seja, trocado em miúdos, que gostaríamos mais de ser carrascos implacáveis do que nos compadecemos com a vítima. Sociedade do Espectáculo ou a ascensão de Crash à la J.G. Ballard. É uma espécie de Olhar a Dor dos Outros by Susan Sontag, ou a mutilação genital a entrar pelo ecrã à hora em que comemos. Blazé! A ideia ficou a ser ruminada enquanto enfrentava há pouco uma série de seres-zombie que vagueiam pela cidade do Porto à noite.

Mas, a verdade é que o meu encontro real com o Sublime começou a semana passada e têm-se sucedido, compondo uma geografia dos seres estranhos que habitam este filme que não realizei, e dando viço à teoria do Sublime no mundo paralelo.

1. Primeira hipótese, em plano sequência, zoom in, zoom out e travelling. 
Ele vinha na minha direcção na Rua de Cedofeita. Era manhã cedo. Trazia um chapéu estilo entre o panamá de sambista carioca e o ar de mafioso desde pequenino. Era negro. Um negro pardo. Era de um alto invejável. Vestia gabardine escura e um fato irrepreensível ajudado por uma gravata lilás. Olhou-me e arrepiei-me. Continuou na minha direcção e como quem ousa enfrentar um diabo, destemida, olhei de novo e senti-me desfalecer se não tirasse os olhos daqueles outros magnéticos, a chispar peso, um certo chumbo. Olhar vazio, no horizonte. E tão pesado. Um peso que nos cai no corpo, nos ombros, como quem nos empurra para terra até que enterremos os pés. Passou ao lado, e quase poderia ter tido um efeito abrasivo se eu não me tivesse desviado. Foi como se não me visse, do alto da sua negritude, do librar daquele olhar tão azul, que o chapéu protegia da luz. Foi-se. Olhei para trás e lá ia ele, de andar pesado, como se quisesse poupar léguas na caminhada, com passos largos. Podia jurar que ele não me tinha visto, e como não o tivesse, pesou tanto. Aí veio a primeira hipótese: a probabilidade de me ter cruzado com um não-ser,  a quem deram o guarda-roupa desadequado para a época. Estava provada a primeira ideia do sublime e levantada a questão da minha twilight zone pessoal.

2. A segunda hipótese. Fade in. Plano Geral. Jump Cut e plano lateral a imitar o olhar de esguelha. Apaixonei-me de tal forma pelo "Assassina Ilustre" de Enrique Vila-Matas que hoje comi-o, enquanto andava de metro que deixei passar a minha estação. Quando me apercebi (e, inevitavelmente no mundo paralelo a que fui parar: eu estava ali, mas não estava: vivia a vida do livro) resolvi seguir mais um pouco viagem até à Maia. No regresso, enquanto lia "Assassina Ilustre", um outro homem, negro, cabelo muito curto, blusa azul-céu, sentado do meu lado direito, emitia uns sons guturais, que oscilava com a língua, quase a querer imitar os cascos de cavalo, quando queremos contar às crianças os contos que exigem tais onomatopeias. Pensei que imitava a música que ouvia, mas não tinha auscultadores. Simplesmente transbordava o som gutural e de língua solta e, de repente, saiu-lhe um "Fantástico". Não percebi por que cantava, nem o Fantástico, mas talvez fosse outra espécie de Sublime naquele seu mundo e eu fosse o mundo paralelo. Ele não estava certo se eu existia. Nem eu.

3. Terceira hipótese. O plano de esguelha, essencialmente. 
A miúda caminhava cabisbaixa. Óculos de hastes pontiagudas no final, casaco cinzento, mãos nos bolsos e o rosto a querer ir para lá, se também pudesse. Os olhos queriam cair. Olhava o chão. Fungava, como se escondesse um choro. E as lágrimas não podiam descer porque a vergonha berrava-lhes. Ela estava ali. Mas não estava. Eu sei que não estava. Porque quando alguém passou por mim depois foi na direcção dela e ninguém se desviou. Apeteceu-me perguntar-lhe por que razão estava triste. Por que razão os olhos lhe queriam cair e lhe apetecia amordaçar a vergonha para fazer a festa com lágrimas e beber o sal delas. Ultrapassei-a a pensar tudo isto e fiquei na dúvida sobre o que haveria de sublime na tristeza de alguém.

4. Quarta hipótese. O Plano Americano. Plano Próximo. E fade out. 
Ele cambaleia muito. Tem a muleta. Um pé torto. O outro com as solas gastos e o fato-de-treino puído. Rugas da rua. Sim, a rua rasga ru(g)as na derme e erode um pouco mais a máscara que carregamos. Estende o boné para quem passa. Uma ajudinha, se faz favor. Uma ajudinha para um pobre homem, com tom de desespero, um homem que pode desmoronar a qualquer momento, na imprevisibilidade da angústia. Uma ajudinha que sai da boca desdentada. Das cáries que nunca tratará. Da vida possível que nunca teve e que nunca saberemos. Temos sempre duas: a que sonhamos, e a que vivemos. A que construímos como queremos é outra história e aqui não cabe. Mas pode ser uma dessas vidas paralelas, se formos capazes, como Pessoa, de nos despersonalizar.  

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