segunda-feira, março 14, 2011

Paixão

Começa com um formigueirozinho, os olhos dengosos a quererem fechar quando se aproxima o beijo, o peito a arfar-arfar, as mãos a suar em seco, embora a humidade esteja quase a explodir nos poros das linhas de quiromância, um estado de arrebata-arrebata e, parece, quase já estamos em efeito de algodão doce e ser comido, com palpitações e o sorriso a ser uma espécie de boba incontinência, essa mesma de que é feita a filosofia de botequim. 

A paixão também é isso, o amor é outra coisa. E prometi-me, fiz juramento sob risco de exílio auto-inflingido, que viveria de paixão. Faria as coisas com paixão, viesse a dificuldade que viesse. Viesse o cinzentismo que viesse. Haveria sol, sempre, aqui dentro. E sol é paixão. Fiz jura em pequenina, quando abri o primeiro diário, com doce olor a folhas cheirosinhas: uma espécie de água-de-colónia de meninas mimadas, que a vida vale pela paixão pelas coisas.

Andei, certa vez, a rabiscar nesse diário e, quando me dei conta, já grandinha, tinha escrito a sentença que me haveria de perseguir os fôlegos e retardar o efeito contínuo a algodão doce. É fazer as coisas com paixão, minha menina. Até ir ouvindo a primeira, a segunda e por aí em diante; de ouvir os outros a me ouvir vibrar. De fazer com que os outros, também vibrassem com as coisas que lhes dão o incontinente e genuíno sorriso bobo pelas coisas que não sabemos explicar e que nos fazem tão bem!

E, com respeito ao pragmatismo do mundo, não consigo fazer as coisas do mundo que amo, sem ela. Sem a paixão. Não consigo. É assim com os amores, é assim com as minhas pequenas coisas que, agora, ocorre-me têm cheiro a velho. As minhas paixões têm cheiro a velho, daquele velho-lar, quase telúrico, e que ainda me fazem ficar com os olhos dengosos, efeito de algodão doce, palpitações e um sorriso bobo, incontinente. 

Ocorre-me tudo isto porque saio das aulas de Literatura com paixão arrebatada, com vontade de mudar as coisas, sendo um pouco mais eu, e que esse pragmatismo torpe e errado impõe-se-me, tirando fôlego, causando-me arritmias e ansiedades, amarguras e tenazes desalentos como se me arrancasse um pouco mais de mim. É como se precisássemos de injecções de paixão, para degustar um certo optimismo.

Ando tristonha, porque há esta pressão de mundo que não me deixa ser um pouco mais eu. E esforço-me. Só a consciência, se falasse, sabe as noites brancas com cedos acordares de investidas que já contam aqui dentro (ando um pouco cansada, confesso). 

E ocorre-me isto porque vi de novo o mendigo, a conta bancária, olhei para o presente, cheirei o futuro como tábua rasa, respirei, e porque, para bálsamo das tormentas, andei a ler as minhas Etiquetas Negras, as minhas Piauís, as minhas Replicantes e Bravos da vida e aí sinto-me um pouco mais próxima de mim, do meu algodão doce, da minha essência que é escrever. Escrever e ser apaixonada por coisas tão velhas como máquinas de escrever, rádios antigos, polaroids, vinyl, tintas permanentes, cadernos de notas e sebentas, sabonetes do armário da avó, baús, águas-de-colónia, assemblages, os clássicos, slides e vespas. Coisas sem importância, de tão pequeno e singular peso na minha balança. Haverá outras coisas, enquanto, ao mesmo tempo tenho a high tech paixão de coisas como i-phonices com o bobo sorriso incontinente.

Talvez seja o retorno de Saturno. Talvez seja um golpe de azar. Talvez seja um teste para alguma coisa, sobretudo para a minha capacidade de aguentar os golpes ou mudar a estrada e caminhar para outro lado. Ou simplesmente nada, porque há momentos assim, de contínua rejeição. Em que o mundo nos rejeita com tamanha transparência como quem diz que não vale a pena esforçarmo-nos porque tudo está escrito. Resta-me, pois, continuar a acreditar na paixão.

2 comentários:

Cris =) disse...

Tão lindo... adorei!
Beijos

Paulo Moura disse...

Pois é. É isto tudo sem + nem -
Por vezes os tais sinais aos quais tentamos (sem perceber muito bem porquê) virar os olhos.
Os "Heróis do Mar" escreveram em tempos "Paixão, não vais fugir de mim, paixão até ao fim".