quinta-feira, setembro 02, 2010

O inquilino II


Não devia continuar com isto. Estou a tentar amarrar os dedos, mas eles ganharam vida própria. E quando os nossos membros ganham vida própria a rotação voluntária pode ser mais longa e libertadora do que imaginamos. Não estou certo de que deva fazê-lo. Os dedos armadilham-se nas teclas e vertem neste écran branco de nada a quase-metade do pensamento que entrou em combustão na máquina cerebral. 

A máquina cerebral. É isso. Quase-metade: isto de acharmos que a linguagem traduz fac simile aquilo que pensamos é uma grande e retumbante gargalhada. Nada: não traduz absolutamente nada. Apenas roça uma probabilidade aproximada do algo de parte que se passa nesta maquineta impregnada de defeitos de fabrico, à nascença, com tendência certa de piorar com o tic-tac do tempo externo. Sobretudo exposto ao tempo externo. O suor também ajuda. Vai degradando com as bofetadas sociais, as hipocrisias, o desgaste natural da falta de amizades verdadeiras, da falta de amor, até faltar o sexo higiénico. Pelo menos, o higiénico. Descartável. Pode faltar o sexo higiénico. 

A vizinha debaixo nem deve saber o que é isso. Eu soube-o muito tempo. Até à abstinência viril. Temos sempre de dizer que é abstinência viril quando já não nos querem. O resto vocês sabem. Ao resgate voluntário para este compósito asséptico das divisões. Descartável. É. Até as putas me começarem a rejeitar no asco sólido que pode ser a decisão alheia. Como dependemos do asco sólido da decisão dos outros. Depois, as erosões internas: como nos fazemos mal, porra! É, quando pomos tudo a girar, esta máquina entra em elipse. Trata-se de uma mecânica e química alquimia que gorgulha, engrena, circula, gira, amortece e enferruja. 

Como pode enferrujar!: até o óleo biológico deixar de ser suficiente para nos valer na hora de friccionar os freios necessários para o derradeiro crash. Mas bem sei que devia parar, agora, mesmo de escrever. Vou parar. Eu vou parar. Continuar pode sempre parecer forçado. E quando forçamos o mecanismo de nós, já estamos a trair o veio escorreito da vida, que é o mesmo que dormir com várias amantes ao mesmo tempo, ansiar, asfixiar o peito, multiplicando fingimentos. Multiplicamos sempre fingimentos por solidariedade. Elas sabem que minto. Fingem acreditar, mas tudo fica bem. É agora, preciso de parar. Há isto que não me deixa: eu preciso de testemunhas. É por isso, que os dedos vão, quem manda é a maquineta cinzenta. 

O processo é simples: há o espanto. A indignação. A inquietude. Tudo começa com a inquietude. O peito aperta, prende, como se o agarrassem a seco e fosse espremendo um pano lá dentro, devagarinho. Passa para o corpo: ah, e vai formigar! Comunica com a máquina cerebral: o curco-circuito disfuncional já começou, há a ebulição, a tempestade, a explosão, a corda rompe: clash: haverá sempre relâmpagos internos e as lâmpadas fundem sempre. Temos muitas lâmpadas aqui dentro de nós que fundem todos os dias: além dos fusíveis! Convém que as tenhamos em doses suplentes. Alta voltagem. 

Haverá sempre alta voltagem e um flash pequeno, transmitido para as ligações internas até às pontas dos dedos. Eles excitam-se. Convencem a mão a saltitar pelas teclas. Sabem as letras precisas que têm de premir para formar uma frase, texturizar o conteúdo certo, na língua certa e não noutra. Por que raio não é noutra? E são as pontas dos dedos que mandam, sabiam? As pontas dos dedos. São mais donos do nosso mundo: porque mais responsáveis de fazerem o caminho inverso à máquina cerebral. E isto é tudo em câmara lenta, entendam. Esperem. Acho que alguém bateu à porta. Tchekov a esta hora? Tchekov terá acordado de novo de madrugada. Mas Tchekov foi-se há muito. Só a mãe dele toma agora conta daquele apartamento soturno e cinzento. Não gosto de gente cinzenta. E há tanta gente a espalhar cinzentismo por aqui. Carregam uma nuvem pesada a ameaçar chover só para chamar a atenção. 

Sempre me afastei de gente assim. Bajuladores. Depressivos. Inseguros! Detesto gente depressiva. Só a mãe de Tchekov era assim. Ele era branco-puro. O cinzentismo deixava para a poesia, que a propósito era uma porcaria. Só se satisfazia depois de várias vodkas puras. No final, tornou-as frequentes ao dia, porque não conhecia mais outra forma de enfrentar a vida sem o entorpecimento dos sentidos pelo álcool. “Não consigo ficar sóbrio o tempo suficiente para achar graça em ficar sóbrio”, citava F. Scott Fitzgerald. 

O fígado não aguentou. Tchekov ficou carcomido. Era dono de um sebo na Rua Augusta ao lado do neón das putas. Não existe mais Tchekov, nem o sebo, nem o poeta. A arte do carcomimento (não me importa que a palavra não venha no dicionário é esta a quase-justa que me traduz o que lhe aconteceu) levou-o cedo. A vodka deu um empurrão. Os néons ainda lá estão. As putas também. Acho que bateram de novo à porta. Ouve-se um eu não sabia. Três pancadas na porta. Ouve-se um leva-me, depois um vens cá fora, seguido de um queres que arrombe a porta. Ouve-se um não me podes deixar assim. Não me podes deixar nunca. Ouve-se um sua puta tu dependes de mim e nunca mais ninguém te vai querer! 

O baque estremecedor dos pontapés na porta. Há um, dois, três. Há mais. Há a voz. É aqui? É a voz azeda e rouca de um homem que deve ter gritado toda a vida. As cordas vocais agora traem-no em vingança necessária, atroz, senil. É a voz do vizinho de cima. O vizinho dos cacos de vidro da cerveja. As pancadas são secas. Ou sou eu que estou sensível. Não poderia nunca ser nesta porta. Não é na minha porta, claro. Não depois que Tchekov se foi. 

Os russos sempre lidaram melhor com a solidão. Há a vodka e o Dmitri Dmitriyevich Shostakovich ( Дмитрий Дмитриевич Шостакович). Sinfonia N. 7 “Leningrado”. Obrigou-me a ouvi-la dezenas de vezes. E dizia-me olha como a vida acalma agora: são as armas depostas. Olha como se torna violenta agora, a revolução vai avante. Olha como se escondem como ratos, olha como se vergam, olha como se traem, olha como se vendem, olha como a essência humana....

Era quando lhe dizia sempre para parar. Não aguentava aquilo. Nunca podia aguentar aquilo tudo até ao fim. Obrigava-me a ouvir a música vinda da casa dela, à tarde, quando o prédio estava vazio. Punha a música alta e interfonava-me. Ouves? Ouves? Quando não me apetecia não lhe atendia, mas ele punha a música na mesma. Era uma espécie de terapia obssessiva-compulsiva. Eu ficava desesperado. Só que a gente habitua-s a tudo, menos aos outros. E a melhor forma de ganhares uma guerra é cederes. Eu não podia sair de casa. Era o meu Inferno Particular.

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