quarta-feira, julho 14, 2010

A Casa

Vovó Oneide tem vagar nas pernas e ligeireza nas palavras de tom cerimonioso. Tem a casa, os netos, as rendas, as mantas para o Círio que desempoeira do baú duas semanas antes do fervor de Outubro para saudar a santa na berlinda. Nossa Senhora da Nazaré conhece-a, respeita-a e agradece-lhe a devoção. Vovó tem, ainda, o violão no rádio. Como ela gosta do violão! Bebe o leite com tapioca ao fim da tarde no lanche que é jantar, mastigando-a lentamente para saborear melhor o seu violão. Pede silêncio quando as cordas são dedilhadas e há uma serenidade de casa sem relógios, onde o tempo já não importa mais. 

Sorri com os olhos. Conseguimos vê-lo trespassando as lentes grossas dos óculos. A voz doce, diáfana e leve, arrastada quando se enternece. Não raras vezes enternece-se, num “deixa te contar”, num prolongamento que pausa os episódios de uma vida de 90 anos. Cheios, tão cheios, que transbordam.
Houve tristezas, mas delas não se lembra. Houve alegrias, tantas, cunhadas na forma como sorri. Saem pelo brilho dos olhos a puxar as palavras, a voz, e o regozijo. “Senta-te minha filha”. E sentimo-nos filha dela, ou neta, ou um parente afastado que veio visitar a casa para logo se tornar próximo, tão próximo, pronto e atento para que ela conte, o que tem para contar. Sentemo-nos Vovó, Oneide. Sentemo-nos. Sentemo-nos nas cadeiras aristocráticas que guardas do século passado e que serviram para muito descanso de burguesia e classe alta que ia às festas. Aquelas festas. 

O bar com whiskey. Bebia-se muito whiskey? “Pois”. Os copos robustos, vindos da Europa. Os lustres finos, delicados, a brilhar para a festa. Parece que havia mais luz. A radiola tocava. Divertias-te. Afinal estavas na casa que te foi destinada. Quase a perdeste. Mas havia amor. O salário dos correios não te dava para tudo. Foi quanto baste. Deu-te para os filhos e para o teu sonho. Sabes que foi a vontade que te deu o sonho. E, quando dinheiro não havia, apareceu porque a vontade o trouxe. A casa foi a leilão. Não, não. Não havia dinheiro. Esta casa de pé direito alto, com portadas de sonho, tombadas como património de Belém, de salão fino, antessala, jardim, quartos, corredor que é uma veia da casa onde a memória acontece viva, ligando o teu violão do rádio ao silêncio da sala de jantar, onde tens as tuas santas, fechadas numa caixa de madeira. Como o vidro dela reflecte o retrato das tuas gerações, dos teus amores, da tua memória. 

Vi-me nesse vidro, também. Estavas lá tu, sentada comigo, a confidenciar-me pedaços da tua vida. Sábia. Que sábia que és. Ouço-te, com atenção. Sem saber muito bem como contar o teu tesouro. Maior que essa casa que é parte dele. O leilão, falavas do leilão. Quando os bolsos vazios não sabiam como licitar o valor final que abrisse a porta para aquelas escadas da entrada, de carpete vermelha, aveludada, inaugurando-te num sonho. Viveste-o. O teu amor foi-se. Ficaste com as felizes memórias desse grande afecto, sereno e feliz tempo que baste, para que não te lembres das mágoas. Sabes, Oneide, és património valioso, tombado pela vida. Se um dia ainda puderes, ensina-me a viver.  

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