quarta-feira, fevereiro 03, 2010

Brasileira 120, 122

Muitos passos, ressoares na calçada em tiquetaques lentos, saltos altos, rasos, suores frios, arrepios, sapatilhas baixas e voos rasos, os das pombas impertinentes. Ele ri-se muito, falso. Tem bom aspecto, cabelo grisalho, Levis 532, enquanto fala ao telemóvel, nervoso, e coça os tomates, como se fosse tique. 

“Oh, Marta, eu não lhe disse que aquilo não ia andar para a frente!” 

Ele andou, cirandou, fez círculos com o corpo e com os pés, gastou solas na calçada portuguesa da Baixa Chiado, à frente do homem de branco, com o pé encostado à porta da Divani & Divani, careca e uma estrela disforme tatuada na testa, olhando numa intensa e atenta contemplação de girar a cabeça para a esquerda e para a direita, à medida que o povo passa. Correcção: elas. Ele só olha para elas. Só persistiu na esquerda quando a loira de minissaia, esboço de Brigitte Bardot, com matizes suaves de Sophia Loren (e alguma coisa de mulher de Berlusconi) passou, muito agitada e lolita com o seu "puppy" pequerrucho e esquelético, vestido com uma camosolinha de lã a condizer com a camisola da dona. Ela sentou-se, quase ao lado do Pessoa, pediu um café e uma água de morango, pôs o puppy nas pernas de minissaia e roubou um cigarro à caixa Marlboro. Enquanto afagava o seu bicho-amostra-canina abriu o mapa de Lisboa e começou a contemplar as manchas coloridas que reduzem a capital a uma paleta de bairros, zonas e regiões com veias sem vida. 

O homem de branco, que agora coça o nariz com os dedos e a mão aberta, deteve-se nesses gestos femininos oferecidos a céu aberto por uma pintura viva, que se tivesse essência autoral, seria, com certeza italiana, com um puppy rosa. Por isso ele não viu, nem será assombrado em pesadelos, reduzindo a selecção do olhar ao anominato dos que não vê, o homem de óculos escuros, barba de dias, mãos nos bolsos (e a mexê-los muitos, em círculos), chapéu rural, um homem estranho, muito estranho, que rondava as mesas, como se olheiro fosse o ofício que exerce por vocação (seria um detective de filmes de pornochanchada?), que o nosso homem de estrela tatuada melhor exercia, por atributo de subtileza, camufladamente encostado à Divani, e sem que a loira se apercebesse momento algum. Se acontecesse, talvez o repreendesse pela invasão da malha invisível que nos permite a nós, transeuntes públicos, à dissimulada ilusão de que se não vemos quando nos olham, não nos incomoda, mas se nos olham quando percebemos, o confronto do olhar do desconhecido é reprimenda suficiente para que voltemos à virtual malha invisível que reivindicamos por direito ao sossego e ao delével anonimato, como espaço privado capcioso em praça pública. 

Mesmo eu, não obstante a presunção, devo ser observada por olhos que desconheço, ignoro e nunca saberei, porque me encolho no ofício de olhar quem passa e ouvir, manhosamente, quem por aqui anda.

"Eu ando a guardar os talões todos, porque quando chegar a altura de pagar, eu vou perguntar que taxas é que eu ando a pagar”. “Felizmente já está tudo ultrapassado. Só podes fazer disparates para o mês que vem. Ainda não falei com o Manel. Sim, senhor. Está combinado, então. Ah, ok. Um abraço. E veja lá se não faz asneiras no Brasil.” “Oh, Preta gostosa. Ela sabe que é gostosa”. “Com ou sem Canela?” “Ali tem o Pessoa, e você pode sentar-se ao lado dele”. 

E, agora, mães de mãos dadas com filhas, camisolas amarelas, ombros à mostra, a despeito do frio de Lisboa, olhos vermelhos – os de um novo olheiro cansado, talvez- que se encosta à montra da Sisley. Vê duas mulheres luxuosamente ornadas, vai ter com elas como ave de rapina e levando a mão à boca, diz que tem fome, e se elas não lhe podem dar algum para comer. Enxutam-no com olhares azedos, de desprezo atroz e ameaçador, mais denso do que as palavras aziagas. “Eh, pá, por favor”. E afastam-se. Ele sorri, com os olhos tresloucados, lunáticos em órbita descontrolada, e deambula em círculos como se imitasse o rapaz da Levi´s, que há pouco coçou o saco, puxando as calças de ganga para cima e para baixo, para baixo e para cima, enquanto se ria muito com a tal Marta ao telefone – e se ela soubesse talvez desligasse, para que ele terminasse o ofício da fisiologia pública masculina e deveras viril, não fosse ele, distraído, trilhar os pêlos, por engano. Os pêlos, claro!

O homem que ria já se foi, enquanto os predicados aqui discorreram, e a mulher-palito entra na Benetton. A loira também abandonou o recinto e o alcance de visão do homem de branco, que agora, voltou aos exercícios de alongamento do pescoço esquerda-direita-esquerda e outra mais oxigenada passeia de mão dada com uma velha de cabelo muito curto e preto, enquanto as sirenes da ambulância soam tão perto que parece que mundo se acaba aqui, ou que o Haiti também é aqui, ou onde nós quisermos, se não foi onde sempre foi. 

“É do interesse deles, sempre!”. “Vais-me dizer, agora, que a culpa é minha?” 

Brasileira, lá está, entre 120 e 122, esquina com o homem de estrela tatuada na testa. Transversal à loira do puppy que já se foi e paralela ao homem de olhos vazios (existem olhos vazios, desses mesmo que só ali estão por estar, sem talento, mas disciplina obrigatória), que é como quem pede um olhar de atenção, nem que seja de reprimenda pela transposição da malha invisível. Mais ombros à mostra na sombra fria de Lisboa, voos rasos e destemperados, passos, tantos, com tom de fim de dia, que serão os mesmos ao começo da manhã e a meio dela, decotes profundos, sem mamilos arrepiados na pele morena da moça de cabelos pretos, gostosa, muito agarrada ao braço do moço de peito aberto, imberbe, e a coçar os tomates. “Cuidado”, talvez ela lhe dissesse, se soubesse. “Ainda podes trilhar os tomates.”

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