quinta-feira, fevereiro 04, 2010

Amores impossíveis


Já me apaixonei no autocarro. Havia aquele rapaz muito bonito, de olhos verdes, com o cabelo castanho médio que caía nos ombros, e o nariz empinado, longo. Era muito magrinho e sentava-se sempre lá atrás, nos últimos bancos, quieto, constantemente acompanhado por miúdas. E eram elas que falavam tudo, em risinhos de garotas a suspirar pelos olhos verdes, percebia-se, como eu, em pé, e com o rosto muito sério, com vergonha de que ele me notasse. E havia aquele amigo dele, num véu de mudez absoluta, também, com um cabelo escuro, liso e médio que me fazia querer adivinhar a que tribo indígena, talvez, pertencesse aquela herança capilar. Comecei a aperceber-me que às quintas e terças – como comecei a ansiar as quintas e terças! – o 54 trazia-me os olhos verdes para me fazer feliz no curto percurso de dez minutos até à minha paragem. Foi assim durante um ano. Saía da escola, corria 15 minutos para não perder o 54 e a minha felicidade da semana, a de um entusiasmo pueril de poder vê-lo.

Depois vieram as férias de Verão e foi-se o 54, os olhos verdes, o nariz empinado e comprido, o sorriso leve que esboçava das graçolas das miúdas suspirantes, que ele sabia, via-se, serem para ele. Ainda pensei nele, algumas vezes. Depois esqueci a história, veio a praia, as viagens, a liberdade juvenil, o peito insinuante,  mudança de escola para o secundário, e a decisão de que iria para o Carolina Michaelis. Quando apanhei o primeiro 54, em Setembro, de regresso a casa, numa segunda-feira, não poderia adivinhar que me traria, de novo, aqueles olhos verdes, agora saturados por um leve bronzeado de rescaldo de Verão.

O entusiasmo voltou e um novo número. Poderia ocorrer que o 87 também trouxesse o verde dos olhos dele. Ficava mais afastada da paragem, para ter tempo de perceber se os lugares lá atrás, do 54 ou 87, trariam quem eu queria, num gáudio, agora, entre sessenta a quarenta minutos, pois a jornada era mais longa do Porto até casa. Não era muito difícil, ora, perceber que ele, certamente, andaria, também, numa escola ali do Porto e sobreveio-me a iluminação cartesiana de que poderia ser no Rodrigues de Freitas. Era-o. Pela primeira vez a perspicácia que diz aos neurónios x  e y que zzzz não anda a dormir, serviria para alguma coisa. Eu ficava muito quieta no autocarro, para ele não me perceber, e depois dei-me conta que o amigo de herança capilar indígena andava na mesma escola que eu. Acho que fiz um carnaval cá dentro, com confetis, serpentinas e, talvez, um espectáculo pessoal de hormonas em pirotecnia, ou qualquer coisa parecida. Poderia, então, ser mais fácil descobrir coisas sobre ele.

A C., entretanto, começou a perceber e a dar-me conselhos. “Se queres que ele saiba quem és, vai mais lá para trás”. Eu, numa profunda vergonha, respondia-lhe que nunca uns olhos daqueles se interessariam pelo castanho-mel que mancha o meu olhar. Não me recordo quando comecei a perder o acanhamento. Talvez quando uma das miúdas se chegava muito a ele, com discrição, como se isso fosse denunciador de algum propósito mais  íntimo que me começou a inquietar as hormonas e o pensamento. Cheguei-me mais para trás. Para ele. E pensava nas voltas que a vida dava, embora eu não saísse do lugar. Cogitei: (tantas vezes reflecti) Há um ano, começara a apaixonar-me por aqueles olhos do 54. Por isso, poderia reivindicar o direito de ter visto primeiro. Seria agora ou nunca.

E vieram os saltos altos. Aos 15 anos vieram os saltos altos. Poderia andar de saltos altos e aquilo era uma coisa que, achávamos, nos tornava mais femininas. Não sei se foi por isso que ele começou a reparar em mim (claro que não Eros, desculpa-me!). Talvez antes. Manias de achar que os rapazes reparam nessas coisas. A importância que damos aos detalhes são supérfluas nuances: pura perda de tempo. Só sei que o dia dos saltos altos foi o dia do primeiro olhar: verde e castanho-mel. Um "After-Eight" mais claro, falsificado, portanto, em que eu, supus, era o chocolate derretido, e ele a menta fresca que fica um pouco mais na boca. Saí do autocarro, mais lentamente, por causa dos saltos, que afinal nem eram assim tão altos, apenas manha feminina num jogo de sedução, solidário com o menear vagaroso das ancas.

Olhei para trás e do outro lado do vidro, dentro do autocarro, ele inclinara a cabeça e olhou-me. brevemente. Enrubesceu, eu enrubesci e achei que aquilo era um sinal. A partir daíi vieram outros olhares. O aperto no peito que parece que vamos desfalecer de tanto derreter cá dentro. Os arrepios bons dos pensamentos de breves momentos, que não passam de olhares. O platonismo de um amor assim, que não existe, parece impossível, ainda que a esperança começasse a latejar, por mais pequena que fosse. Quis o acaso que, um mês depois, estivesse sentada lado a lado como os "meus" olhos verdes  não no autocarro, mas na sala de um curso de línguas que fazia há anos e cujas aulas retomaram. Quando cheguei à sala, quase tive uma coisa, um susto, um desfalecer momentâneo, pernas tremulas, olhar furtivo em estado de “vou- corar” e zás: o único lugar disponível era ao lado dele. Ele baixou os olhos. Ficou muito vermelho e ficamos assim os dois, muito calados e envergonhados, talvez a pensar, de novo, nas voltas da vida, sem sairmos do lugar. Sei que ele me disse, depois, que já estava escrito. Daí até ao primeiro beijo foi uma semana. O que fora um amor impossível e começara um ano antes num 54, numa tarde improvável de adivinhação da reincidência do transporte público que uniria um verde com castanho-mel.

Só que eu, do alto das minhas teorias palermas e ilógicas (e numa presunção do "raramente-me-engano- nessas-absurdas-conjecturas") pensei: "Se o primeiro beijo não correr bem, lá se vai tudo." Cheguei a  imaginar que a magia do impossível era mais intensa e interessante do que a desilusão do beijo, do todo, das conversas vazias - e que medo sentia. Pronto o primeiro beijo não foi grande coisa. Não conseguíamos acertar a melodia que une as glândulas gustativas num júblio de coro de anjos afinados, ouvir sininhos celestes e sabe-se lá mais que viagens dos sentidos os beijos têm, como se quisessem desafiar o mais poderoso dos alucinógenos. Eu só queria ficar a olhar para aquele verde.

Só que, depois, vieram as flores, os cartões apaixonados, os 54 ao lado dele e a outra miúda de trombas porque ele, agora, tinha menos motivos para olhar para ela; os passeios perto de casa (a imaginação não era muita)– e da minha avó ameaçar que iria fazer queixa aos meus pais, porque andei de mão dada com um rapaz de aspecto duvidoso perto de casa (eram só uns olhos verdes, mas acho que todos os rapazes têm aspecto duvidoso para a nossa família, quando temos 15 anos) e de eu chegar a temer e  a crer que, talvez, andar de mão dada, fosse, na verdade, uma coisa muito má. Depois vieram ainda os abraços cada vez mais perto, veio aquele regozijo pessoal de "Uau, apaixonei-me no autocarro e um ano depois, o amor acontece e o castanho dos meus olhos até fica bem com o verde do olhar dele"; a inveja das amigas porque ele era muito giro; os encontros mais prolongados no intervalo grande de 15 minutos: o encontro a meio do caminho entre o Carolina e o Rodrigues, que apimenta a coisa numa espécie de novela mexicana de romântico e melado de mais para ser verdade.

A coisa durou assim uns 3 meses. Até que ele começou a inventar desculpas. O 54 já não o traziam e só nos víamos no Curso de línguas, uma vez por semana, e por obrigação de que ele não podia fugir. A covardia de enfrentar uma conversa. E as coisas terminam assim, em fumo vazio e vago. Quando começara o fim eu não me recordo, verdadeiramente. Só me lembro de ter pensado, depois, que apesar do entusiasmo das flores e da paixão – que vai esmorecendo se não construímos a cumplicidade suficiente para nos apaixonarmos todos os dias por aquela pessoa  - eu enfeitiçara-me, sim, e apenas, por aqueles olhos verdes, ;só aqueles olhos verdes. O resto eram apenas anexos desnecessários. Como o primeiro beijo.

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